Diversão & Arte [email protected] 17 Curitiba, quarta-feira, 2 de janeiro de 2019 # LITERATURA André Cáceres “Os monstros que dominam qualquer cultura ou período par- ticular oferecem um vislumbre pouco usual dos medos e tensões que caracterizamomomento histórico”, escreve o roteirista e es- tudioso Jamie Russell em ‘Zumbis: O Livro dos Mortos (LeYa)’. Desde que o cineasta George Romero atualizou esse mito hai- tiano para os novos tempos com seu ‘A Noite dos Mortos-Vivos (1968)’, esses monstros dominaram boa parcela do gênero de horror pelas mais diversas mídias. Para tentar compreender es- se fenômeno cultural, o recém-lançado livro ‘Ensaios sobre Mor- tos-Vivos (Aller)’, organizado por Diego Penha e Rodrigo Gon- salves, reúne textos de psicanalistas, historiadores e filósofos do Brasil e do exterior para interpretar em várias esferas o que sig- nificam, afinal, esses seres. O psicanalista Ivan Ra- mos Estêvão explica que mortos-vivos “possuem sua gênese no vodu, crença dos escravos haitianos que mis- turava animismo africano e catolicismo romano e que começou quando os euro- peus levaram à ilha do Hai- ti os escravos africanos”. Desde sua origem, o zumbi é um corpo sem conteúdo, fadado à escravidão, desti- tuído de faculdades men- tais e condenado à labuta incessante nas plantações da colônia francesa Russell relembra que o medo dos haitianos não era do ataque dessas criaturas,mas simde se tornar uma delas e perder a própria individualidade. É justamente a incapaci- dade de individuação que preocupa o filósofo eslove- no Gregor Moder emumdos ensaios mais inquietantes do livro. “Ninguém pode tirar o ou- tro de seu morrer”, escreve Martin Heidegger em ‘Ser e Tempo’. A partir dessa “ideia de que a morte é inalienavelmente minha”, Moder transmite o real horror do zumbi: ele aliena o direito à morte e, portanto, à própria individualidade, criando uma massa amorfa de ex-indivíduos. Para dar a dimensão dessa questão, ele faz uma comparação com a mitologia grega: Alceste, mulher de Admeto numa peça de Eurípides, aceita morrer para dar ao ma- rido a imortalidade. Esse sacrifício, segundo Moder, inflige uma “dívida impagável”, o que explica como a noção de morrer pelo outro funciona tão bem na esfera religiosa. O psicanalista Christian Dunker tenta traçar uma genealogia literária dos zumbis. Ele parte de ‘A Vida das Marionetes (1810)’, do poeta alemão Heinrich von Kleist, passando pela criatura do ‘Dr. Frankenstein’, no romance de Mary Shelley, e pela múmia de John L. Balderstone, interpretada por Boris Karloff no cine- ma em 1932. “O ponto característico nessa linhagem do terror é que o protagonista restringe sua vida a um único objetivo, um único desejo, que é perseguido de forma irreflexiva, automática e inflexível”, afirma Dunker. Ao unificar essa tradição, o autor fornece uma série de inter- pretações possíveis dos zumbis: “São os trabalhadores que não dormem, os lumpen despossuídos até deles mesmos, os noias e Quem tem medo de zumbis? ‘craqueiros’, os refugiados e imigrantes boiando no Mediterrâ- neo ou reduzidos às cruzes na fronteira entre México e EUA, são as massas errantes africanas, os velhinhos que pesam na Previ- dência São todos esses zumbis que parecem ‘atrapalhar’ a mar- cha funcional das vidas dotadas de valor contra as vidas que obs- truem os processos produtivos.” Outra solução vemdos psicanalistas Leonel BragaNeto eMarta M. Okamoto, que tentam entender o enorme interesse por par- te do público: “Parte desse sucesso deve-se certamente ao go- zo de se ver autorizado a matar semelhantes com a justificati- va de não serem mais humanos que legitimou e legitima ainda tantos assassinatos com um discurso que faz do diferente um al- vo a ser eliminado, fruto do ódio àqueles que não pactuam dos mesmos princípios, culturas ou crenças.” Esse fetiche pe- lomassacre do“outro” justifi- cado pela desumanização es- taria no cerne dos crimes de ódio, crescentes no Brasil e no mundo. Já o historiador Lúcio Reis Filho leva a discussão para a economia: “Antes uma ale- goria do corpo colonial es- cravizado, o zumbi passou a representar o novo escra- vo, o trabalhador capitalis- ta que vive a ilusão de ser li- vre.” No entanto, um dos as- pectos interessantes que ele ressalta é a relação do zum- bi com a ideia de contágio. Talvez essa seja justamente uma das chaves para se com- preender esse monstro na contemporaneidade. Reis Filho credita a vide- ogames como Resident Evil (1996) - em que um vírus fo- ge ao controle de uma corpo- ração farmacêutica - e The Last of Us (2013) - em que um fungo parasita toma controle de seus hospedeiros humanos - boa par- te do ressurgimento dos zumbis no imaginário cultural recen- te e afirma que sua popularidade “pode ser explicada em par- te pelo modo com que o zumbi articula os medos contemporâ- neos sobre a perda de autonomia e a capacidade da ciência de criar devastações apocalípticas.” Ele cita o professor da Universidade de Iona Kim Paffenroth, que vê o zumbi criado por uma arma biológica como “sintoma de um mundo pós -11 de setembro, ansioso com as possibilida- des do bioterrorismo, da mesma maneira que a geração ante- rior viveu constantemente nas sombras de uma guerra nuclear”. Cada um dos oito ensaios do livro oferece uma visão insti- gante e única a respeito desse fenômeno. O mérito da obra es- tá em provocar uma reflexão de alto nível a partir de um te- ma equivocadamente tido como pouco intelectualizado. Como Christian Dunker afirma: “Qualquer um pode dizer que zumbis e fantasmas não existem, mas, ao mesmo tempo, sabemos que coisas como a Cracolândia, assassinatos de negros em perife- rias de grandes cidades e corpos de refugiados boiando no Me- diterrâneo existem. O problema central aqui é que entre a exis- tência e a não existência existe uma coisa chamada Real. Real cuja verdade só é acessível por meio de estruturas de ficção.” SERVIÇO Ensaios Sobre Mortos-Vivos: The Walking Dead e outras Metáforas Organização: Diego Penha e Rodrigo Gonsalves Editora: Aller 240 páginas R$ 60 Para tentar compreender esse fenômeno cultural, o recém-lançado livro ‘Ensaios sobre Mortos-Vivos’ (Aller), organizado por Diego Penha e Rodrigo Gonsalves, reúne textos de psicanalistas, historiadores e filósofos Divulgação

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