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Diversão & Arte 18 Curitiba, segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019 [email protected] Divulgação Macalé vai à beira do abismo para trazer a beleza de ‘Besta Fera’ ## LANÇAMENTO Esse é o nome do álbum e da música para a letra adaptada por ele para o poema ‘Aos Vícios’, de Gregório de Mattos Por Julio Maria O álbum de Jards Macalé, Besta Fera, tem três razões para ter uma edição, ain- da que limitada, em vinil. A primeira é a qualidade das composições, a segunda a arregimentação crua que sempre é va- lorizada nos acetatos e, a terceira, a ca- pa, uma obra de arte que nem precisaria de música para existir. Cafi é seu autor. Depois de assinar mais de 260 capas de discos da MPB - Clube da Esquina 1 com os dois meninos é a mais lembrada delas, mas tem ainda Minas, Milagre dos Peixes, (Milton Nas- cimento); Vai Passar e Cio da Terra (Chi- co Buarque); e Vento Bravo (Edu Lobo) - ele fotografou Macalé em um momen- to magistral, captando sua silhueta ‘ao contrário’, traçando-a com um fio de luz e valorizando seus óculos. Um primor. Fez isso e logo depois morreu de enfar- te, no Rio, mais precisamente na passa- gem do ano de 2018 para 2019, no ins- tante em que o filho avistava uma estre- la cadente no céu. O pernambucano Carlos Filho tinha 68 anos e se destacou a partir dos anos 1970, concebendo capas também para Fagner, Sarah Vaughan, Francis Hime, Jards Ma- calé, Lô Borges, Blitz e Alceu Valença. Por Julio Maria É tudo escuro e vazio. Um tempo emque não há indignação nem revolta, tensão ou loucura. O nada, quem imaginaria, é o es- tágio adiante, a era em que estamos todos embriagados pela perversidade e conde- nados pelas paixões. É a agonia de se che- gar ao limite da água mais funda, à beira do poço sem fundo, da despedida, do infi- nito, do suicídio. Não parece haver espe- rança que dê conta a não ser pelo fato que quase passa despercebido e trai o niilismo do próprio profeta: antes do fim, a beira ainda é a beira e foi sentado nela que Jar- ds Macalé fez um disco brilhante. E a beira de Macalé é poderosa. Ela ter- mina com20 anos semumálbumcommú- sicas inéditas do início ao fim, o leva pa- ra os braços de um grupo de músicos uma geração mais jovem e bons em ver flores no deserto, ou talvez o contrário, e amar- ra canções cheias de uma beleza distópica já chamada por algum tempo de anti-can- ção ou ‘estética da desconstrução’.Com75 anos até o próximo dia 3 de março, trans- formado por dez dias inconsciente em uma cama de hospital em 2018, quando foi derrubado por uma broncopneumonia “barra pesada”,Macalé volta ao front: “Eu diria que é umdisco de 2019. Umdisco da- tado, com angústias e dúvidas deste tem- po.Qual perspectiva podemos ter de futu- ro? E agora? Para onde vamos?” Besta Fera é o nome do álbum e da mú- sica para a letra adaptada por ele para o poema Aos Vícios, de Gregório de Mattos. “A ignorância dos homens destas eras / Si- sudos faz ser uns, outros prudentes / Que a mudez canoniza bestas feras.” É a be- leza do precipício, a lucidez que se tem quem olha para baixo e compõe versos as- sim: “Nem quero que saibam / O valor de minhas canções / Se boas ou más, pouco me importam / Elaborei com meu calor / E nesse trabalho eu levo a flor / Ninguém me bate / E posso prová-lo assim que for / Dado o remate...”, de Valor. Macalé é agora “o homem do fim do mundo” que reaparece pelas mãos de al- guns dos músicos e compositores que também estão ao lado de Elza Soares em dois discos: A Mulher do Fim do Mundo (2015) e Deus éMulher (2018).Aprodução musical é de Kiko Dinucci e Thomas Har- res, a direção artística de Rômulo Fróes e a geral de Rejane Zilles, mulher de Jards. Asmúsicas têmarranjos do próprio artista e de Guilherme Held, Kiko Dinucci, Pedro Dantas, Romulo Fróes e Thomas Harres, além do saxofonista Thiago França (Bura- co da Consolação) e do cavaquinhista Ro- drigo Campos (Besta Fera). “Eu quis fazer um disco ‘paulioca’, mas mais paulista do que carioca”, diz ele. E mais cinza do que azul, ele concorda. Vampiro de Copacabana, de Macalé e Di- nucci, começa com uma trilha de não se ouvir no escuro. Um baixo pedal cria ten- são, há ruídos ao fundo e uma letra ago- nizante.“Quis assim, umdisco para se ou- vir inteiro, música após música.” Então, a próxima é Besta Fera, um samba que Ma- calé criou sobre letra do poeta do Brasil colonial do século 17, o Boca do Inferno Gregório de Matos. O clima pesa de novo com Trevas, uma adaptação para Canto I, de Ezra Pound, a partir de uma tradução feita por Augus- to de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Artilharia pesada que resulta em versos que não deixamdúvida de que algo não vai bem.A instrumentação é espantosa: “Tre- vas, trevas / Treva a mais negra sobre ho- mens tristes / Trevas, trevas / Treva a mais negra sobre homens tristes.” O respiro talvez seja a bailável Buraco da Consolação (parceria com Tim Bernar- des), um samba de gafieira com belo ar- ranjo de metais pensado por Thiago Fran- ça. “Seu coração já é dela, melhor nem lu- tar, não temmais salvação / Sei que daqui por diante, mais nada de bom pode acon- tecer / A coisa já ficou feia e é tudo que eu não desejei pra você.” Sim, o amor dos no- vos tempos também parece sem salvação. Há dois outros momentos épicos em Besta Fera, projeto patrocinado pela Na- turaMusical.Orealismo fantásticodePei- xe é alucinante e arrebatador.Macalé eDi- nucci dividem a música e Rodrigo Campos faz a letra.Avoz é de JuçaraMarçal. Se dis- serem que que é um afro-samba de Ga- briel García Márquez, também vale. “Pei- xe subiu / Das entranhas verdes do mar / Viu o que viu / Inventou as patas, sumiu / Dia seguiu / Conquistou as matas de rio / Quis descansar / Aprendeu andar.” Hámomentos emqueMacalé parece di- luído pelo coletivo e pela força criativa de quem está a seu lado. “Eu digo que é um disco de todos,não tive nenhumproblema com isso.”Mas aí vem a tal Valor, a última, e quemressurge é o velho JardsMacalé co- mo se estivesse recuperando uma grava- ção perdida dos anos 1970. Ele e seu vio- lão genuinamente mau tocado rasgando a verdade sobre si mesmo. Embora tudo pa- reça trevas, não acredite. Macalé as usa só para mostrar como vale a pena estar vivo. Última capa de Cafi comprova genialidade Macalé: “Eu digo que é um disco de todos, não tive nenhum problema.”

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